Gentrificaram o Santo Antônio Além do Carmo?

                           Rua Direita do Santo Antônio (photo M. Rodrigues)

Pois bem; essa é uma estorinha sem pretensões acadêmicas. Apenas um relato e as observações de um antigo morador, mas ainda um habitueé do velho bairro que fica encravado no Centro de Salvador, debruçado sobre a Baía de Todos os Santos.

Santo Antônio além do Carmo está definitivamente na moda e, se já estava se encaminhando para a ribalta há alguns anos, nesse verão de 2024 se transformou num dos lugares mais badalados da cidade, inclusive com seu próprio carnaval repleto de blocos e disputando a preferência de baianos e turistas com bairros tradicionais da boemia, como o Rio Vermelho. Mas, claro, como todo processo urbano, isso não se deu da noite pro dia. E pra entender o processo é preciso voltar no tempo. Pouco mais de três décadas.

O ano era 1993 e o então governador Antônio Carlos Magalhães entregava a reforma do Pelourinho; um dos maiores conjuntos do barroco brasileiro; cartão postal absoluto de Salvador e até mesmo declarado Patrimônio da Humanidade, pela Unesco. A obra estava dentro de um programa muito mais ambicioso de Recuperação do Centro Histórico da cidade; uma obra prevista para sete etapas, onde as quatro primeira etapas foram entregues no tempo recorde das estratégias políticas.

Decorre do polêmico projeto de intervenção, uma enxurrada de críticas que não vou me debruçar aqui, porque não é esse o objetivo. Mas, só de produção da Faculdade de Arquitetura da UFBa, houve uma série de artigos, eventos e livros que discutiam a questão. Participei inclusive, ainda como estudante, da editoração do livro Pelo Pelô, provavelmente a coletânea de textos mais relevante sobre o tema publicada nesse período, organizada pelo professor Marco Aurélio de Filgueiras Gomes.

O sucesso midiático da operação no Centro Histórico redefiniu a política de turismo da Bahia, agora já em consonância com a ideia de "imagem da cidade" que se fazia crescente com a difusão do "modelo Barcelona" que foi vendido ao mundo, impulsionado por tudo que por lá foi feito durante as olimpíadas de 1992. Mas o que tem o Santo Antônio a ver com tudo isso?

Bem, o Santo Antônio além do Carmo é a mancha urbana contígua ao Pelourinho, conectados pela Ladeira do Carmo e a Rua do Passo. Era uma pequena joia bruta esquecida pela maior parte da cidade mas que já era destino de arquitetos ligados à área do patrimônio, artistas e viajantes (não turistas) interessados em conhecer de forma mais intensa os lugares. O Santo Antônio além do Carmo, outrora uma das áreas nobres da cidade (antes dos anos 60), havia perdido seus antigos moradores abastados mas continuou sendo uma área habitada por uma classe média baixa e não teve a mesma degradação física que o Pelourinho e suas outras áreas adjacentes. 

Cheguei no bairro no final dos anos 90 e encontrei uma ambiência de cidade do interior. Crianças brincando nas ruas; senhoras sentadas conversando nas calçadas; a padaria local; pequenas oficinas de carpintaria e serralheria; vendedores de rua e jovens músicos sem dinheiro, na sua maioria vindo de outros países e que se instalavam no Santo Antônio porque era mais barato. E foi justamente esse um dos motivos que me levou, como arquiteto recém formado, para lá.

Além desse quadro social, havia também a Pousada do Boqueirão, da italiana Fernanda Cabrini, uma pequena pousada "de charme" com apenas cinco quartos que, sem dúvidas, foi o ponto de acupuntura urbana (Jaime Lerner) que desencadeou um movimento orgânico de aquisição, por outros estrangeiros (todos europeus), de ruínas e sobrados deteriorados que estavam à preço de bananas. Eram pessoas que investiam recursos próprios na reforma desses edifícios e se instalavam no bairro, morando, constituindo família e se integrando à comunidade local. Aquelas etapas previstas da Recuperação do Centro Histórico nunca chegavam lá.

Participei ativamente desse momento. Sou um dos responsáveis pela "gentrificação" que depois me expulsou de lá :) Mas fiz diversos cadastros das ruínas de então e acabei por estabelecer um pequeno estúdio (SSA, Studio Soteropolitano de Arquitetura) que fez o projeto de reforma de algumas casas e sobrados na região, inclusive a ampliação da Pousada do Boqueirão e os dois sobrados na Rua do Passo que foram comprados recentemente pelo artista Vik Muniz.

Durante uma década e meia, os primeiros anos do século XXI, o Santo Antônio além do Carmo viveu um período muito equilibrado, com uma convivência harmoniosa e complementar de antigos moradores, estrangeiros, comércio local e algumas poucas pousadas, bares e restaurantes, cujos proprietários eram moradores do bairro.


Os anos de chumbo

Por volta de 2011/2012 no entanto, as coisas começaram a mudar. E de forma brusca e um tanto trágica. A empresária Luciana Rique, herdeira do grupo Shopping da Bahia (antigo Iguatemi), se encantou pelo Santo Antônio e resolveu encampar um megaprojeto. Comprou 35 imóveis na Rua Direita do Santo Antônio (a meta eram mais de 60) com a intenção de transformar o bairro num shopping de luxo à céu aberto, com cafés e restaurantes caros, butiques, joalherias, galerias etc. Nas entrevistas a empresária citava Londres como exemplo.

Os resultados imediatos foram, no entanto, o esvaziamento da rua, a perda de boa parte dos "olhos da rua" (Jane Jacobs) e a instalação de uma bolha imobiliária localizada, com os valores do imóveis triplicando do dia para a noite. De forma imediata, também, foi contratada uma empresa de segurança privada que passava à noite circulando pelas ruas com apitos e que, ao contrário, de dar alguma tranquilidade, quebrou o equilíbrio saudável que permitia que moradores ficassem até tarde da noite no Largo do bairro e voltassem andando para casa. Um verdadeiro pesadelo. Moradores reagiram com o movimento "aqui poderia morar gente", com esse slogan sendo pichado nos imóveis adquiridos pela empresária. O fato inclusive gerou um processo, movido pela própria Luciana Rique, sobre o marchand Dimitri Ganzelevitch, um dos ideólogos da ação e morador dos mais antigos do bairro.

O fato é que o projeto não andou, por motivos que até hoje não ficaram muito claros. Os imóveis foram sendo discretamente colocados à venda até todo esse movimento virar um capítulo sombrio na estória do Santo Antônio além do Carmo. Foi nesse momento que sai de lá.


A terceira onda ou como chegamos no hype atual?

Passada a chamada bolha imobiliária do Iguatemi, alguns movimentos foram acontecendo e não sei se já é possível enxergar e analisar com clareza todos eles, visto que não se tem distância suficiente para isso. Mas é possível arriscar alguns palpites.

Primeiro, o Santo Antônio além do Carmo nos últimos cinco anos, apesar dos anos de chumbo, já havia passado a ser um dos locais da boemia em Salvador, com uma expansão do seu público, numérica e social. Não só os alternativos mas agora também a jeunesse dorée que passou a fazer festas da chamada Axé Music no Santo Antônio. Um movimento um tanto inusitado para a escala do bairro. Uma das âncoras desse novo momento é a Chácara Baluarte, uma propriedade nos fundos do Forte do Santo Antônio que recebeu duas edições da mostra de arquitetura Casa Cor e virou um espaço de eventos, levando para o Santo Antonio um público que não frequentava o bairro. Também a instalação do Museu do Mar, da Fundação Aleixo Belov, passou atrair um público novo.

Outra ação muito importante e que foi um divisor de águas nessa nova onda no Santo Antônio foi a recente intervenção urbana feita pelo governo do Estado (os resquícios do projeto de 1993), recuperando a pavimentação em paralelepípedo, ampliando calçadas e, sobretudo, tornando a fiação subterrânea e a iluminação mais adequada à escala humana; uma das mais relevantes intervenções na paisagem do bairro. Essa ação coincide com o fim da pandemia. Começa a partir dai a abertura de uma série de restaurantes "de chefs", transformando o Santo Antônio num dos principais corredores gastronômicos da cidade nos últimos dois anos.

Pode-se dizer, então, que o Santo Antônio além do Carmo sofreu ou está sofrendo um processo de gentrificação? Difícil dizer porque tudo é muito recente. O termo, que numa tradução literal significaria "enobrecimento" deixa, no entanto, muitas imprecisões. Quando foi usado pela primeira vez, em 1964, pela socióloga britânica Ruth Glass, a expressão era utilizada para explicar a mudança social no bairro de Islington, em Londres; uma classe média substituindo a classe trabalhadora. O mesmo aconteceu no Soho, em New York e em várias cidades pelo mundo. O fenômeno é mundial e parte da dinâmica do capitalismo. Acontece até mesmo em lugares muito pobres, como ocupações precárias. Basta que o Estado ou concessionárias de água e luz cheguem ao local para induzir um aumento nos contratos de gaveta, mesmo sem a posse da terra. Isso está bem explicado por Lúcio Kowarick, um autor marxista, no seu livro "Escritos Urbanos".

No caso do Santo Antônio, ainda que espaços de consumo para uma faixa de renda mais elevada tenham se instalado no bairro, não dá para dizer que houve um expulsão de moradores ou mesmo do comércio local mais antigo. Ao contrário, botecos, restaurantes populares e serviços que lá estavam parecem estar se beneficiando do aumento de fluxo de pessoas, bem como da ampliação dos dias e das horas dessa movimentação.

Certamente a rua principal, a Direita do Santo Antônio, está tendo uma forte mudança de uso, com mais comércio se instalando nos andares térreos. Mas, de novo, é preciso uma investigação cuidadosa para verificar se alguns desses espaços não estão se tornando de uso misto. O que seria positivo.

Nesse verão vi antigos pequenos comerciantes bastante satisfeitos com tudo que anda acontecendo no bairro. Mas, claro, alguns efeitos nefastos também estão lá: o fluxo de uma massa de pessoas sem nenhum grau de pertencimento ao espaço costuma ter um uso predatório. Consome e descarta. Vandalismo, sujeira, etc. Também aumenta a preocupação com ruído; com a dificuldade para ir e vir para quem lá habita; a segurança, uma vez que se quebra a possibilidade da vigilância orgânica, feita pelos próprios moradores (o conceito de "olhos da rua", já citado acima).

Enfim, aqui são apenas notas preliminares num caráter mais ensaístico mesmo. Mas teremos uma investigação mais minuciosa da Rua Direita do Santo Antônio e de outras vias importantes do Centro Antigo de Salvador, numa nova pesquisa que estou desenvolvendo durante este ano. Estamos de olho ;)     


   

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