Museu Guggenheim, Bilbao.
A relação entre as cidades contemporâneas e a produção das suas imagens baseadas nas paisagens move-se em consonância com o estatuto do próprio homem urbano atual. A abrangência da esfera mercantil que abarcou quase todas os patamares da vida humana, desde o advento da modernidade, nivela todos os seus aspectos por uma lógica contábil financeira, o que pode ser medido pela transmutação das relações entre os homens e seus objetos em relações de consumo. Um contrato tácito que elabora uma espécie de religiosidade monetária e que substitui a antiga religiosidade metafísica predominante até a Idade Média (Simmel).
Assim as paisagens mais recorrentes das cidades são antes os frutos de uma 'distração' coletiva consensual, que consagra uma comunhão dos seus habitantes e visitantes com as imagens que lhe são confortáveis, do que processos baseados na legibilidade visual ou na recepção simbólica. O conforto vem justamente da possibilidade da redução das paisagens urbanas ao mínimo denominador comum monetário e que implica na sua circulação em suportes diversos: desenhos, pinturas, fotografias, vídeos. E que ganha em intensidade com as cidades turísticas e o seus cartões postais, de caráter histórico ou não.
Esse processo só é possível porque desejado; um pacto entre os que fazem e os que consomem as cidades. A publicidade funciona hoje como mediadora dessa relação e as políticas de marketing, ligadas ao urbano, tentam estabelecer o que é conhecido nos estudos da comunicação como agenda-setting; um tipo de efeito social do campo midiático que seleciona os temas que o público discute num determinado momento. Quando essas políticas são bem sucedidas as maiorias silenciosas movem-se ao seu encontro. São os novos Codex Calistinus, espécie de guia da Idade Média, que no livro V orientava a atenção do peregrinos para a arquitetura presente no caminho de Santiago de Compostela.
É por isso que as investigações que buscam mapear a legibilidade das grandes cidades do mundo capitalista contemporâneo baseadas na 'recepção' das suas paisagens, ainda que lancem mão de metodologias diversas, encontrarão resultados parecidos. Lá aonde estão as paisagens mais bem cotadas na grande bolsa de imagens; hoje, majoritariamente, conduzida pelas mídias, estarão a tradução da cidade. O que torna particularmente questionável a tradição de estudos que começa com Kevin Lynch e o seu clássico a Imagem da Cidade (1960), baseada em psicologia comportamental, memória e significados.
Princípio válido, também, para redes que consomem a cidade de forma alternativa, como nos casos das diversas tribos urbanas ou grupos minoritários bem informados. Seus territórios se revelam nas mídias que lhe dão suporte, como por exemplo nos circuitos de arte e arquitetônicos. Os projetos do star system da arquitetura contemporânea, que comporta nomes com Jean Nouvel, Norman Foster, Zaha Hadid, Libeskind e outros, têm um enorme capital simbólico amparados em boa parte por revistas internacionais de arquitetura como El Croquis e Architectural Review. Troca-se a moeda mas não o fundamento.
Paris, Salvador, Bilbao
Paris e Salvador. Maiores ocorrências no Flickr.
Uma rápida aplicação do que foi dito acima. Tomando-se como base as fotografias de Paris e Salvador que são disponibilizadas por habitantes locais e turistas, em sites da internet como Flickr (Yahoo) e Panoramio (Google), pode-se, utilizando-se os sistemas de busca dos próprios sites e através de procedimentos estatísticos, fazer um mapeamento das maiores incidências de registros fotográficos das paisagens das duas cidades.
Apesar do processo extremamente individualizado, muitas vezes solitário, da seleção das paisagens a serem fotografadas e das quais serão disponibilizadas no site, a imensa maioria das fotos recai sobre as paisagens mais recorrentes. E, em boa parte, a seleção feitas pelos habitantes coincide com a realizada pelos visitantes e turistas.
No caso de Paris as maiores recorrências em relação à paisagem urbana são a Torre Eiffel, o Museu do Louvre, o Quartier Latin e a área de La Défense, esta última mais recente e com uma arquitetura internacional mais genérica. No caso de Salvador a principal região é a do Centro Histórico, sobretudo o Pelourinho, que sofreu uma intervenção na virada para os anos 90, seguida pelo bairro da Barra. Nada de muito novo. Um estudo equivalente que fosse produzido na Salvador do início dos anos 70, provavelmente registraria maiores incidências nas paisagens próximas ao litoral atlântico (Rodrigues).
Salvador e Paris no Panoramio.
Salvador e Paris, em escalas e redes diferentes, são destinos turísticos tradicionais; com as duas cidades carregadas de história. O que, pela quantidade de narrativas já produzidas sobre as duas cidades - sejam na música, cinema ou literatura - poderia tornar difuso um estudo sobre as paisagens e seus registros.
O mesmo não se poderia dizer sobre a espanhola Bilbao. A cidade teve uma importância grande no período capitalista industrial, mas o seu peso só foi importante para a economia da Espanha, mesmo assim até a década de 30 do século passado. Com o desmonte da economia industrial, primeiro com a Guerra Civil Espanhola, em 1937, e depois com a Segunda Guerra Mundial, a cidade amargou uma regressão por mais de 50 anos, que atingiu seu cume com as grandes inundações em 1983.
A saída encontrada pela cidade passou pelas políticas de requalificação das suas antigas áreas industriais, onde a construção do majestoso museu Guggenheim, terminada em 1997, firma-se como representante maior. O impacto midiático que a obra suscitou transformou Bilbao num paradigma da construção de 'identidades por projeto' (Castells) e colocou a cidade no mapa do mundo, porque imersa nos circuitos culturais. Dez anos depois da inauguração a imagem de Bilbao quase confunde-se com a da seu museu.
Bilbao no Panoramio
No levantamento feito a partir do site Panoramio, a área que tem uma concentração de registros em mais de 90% não é outra senão o ponto nas margens do Rio Nérvio onde está o museu projetado pelo arquiteto Frank Gehry.
Algumas conclusões
O olhar contemporâneo continua a passar distraído pelas cidades, desde a modernidade de Walter Benjamim. As alterações se fizeram nas escalas, nas velocidades, nos enquadramentos, nas próteses da visão e no conseqüente aumento da perda de profundidade (o olhar tátil). Tudo isso já observado por alguns autores, sobretudo Baudrillard e Virilio.
Nas diferentes redes de relações sociais, sejam hegemônicas ou não, diretas ou mediadas, a fabricação dos consensos é antes uma espécie de demanda religiosa (religare), na fuga humana da solidão (hiper)moderna, do que a imposição pura e simples dos sistemas de poder. E que não se faz diferente no culto contemporâneo do consumo de cidades.
Cabe, então, observar que continuar a repetir as explicações de como se reproduz o espaço urbano capitalista - foco insistente de muitas das investigações atuais, sobretudo na tradição francesa e latinoamericana – não ajuda muito aos arquitetos e urbanistas a lidarem com a cidade contemporânea. No vácuo do pensamento, as formas das cidades já são, há algum tempo, competência também de outros métiers, como os publicitários e os profissionais de marketing.
Nos estudos e propostas para as cidades, sobretudo naqueles que dizem respeito aos domínios da arquitetura e do urbanismo, parece que é mais do que hora de sair do campo da denúncia, este já bem inflacionado por parte das ciências humanas, e voltar com rigor e zelo ao território crítico das pranchetas.
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