Uma nova flânerie


Paris, Louvre - Gare de Lyon em percurso sugerido pelo Google Earth

O olhar urbano está mudando seu estatuto. A imersão moderna, de Poe e Baudelaire, do flanar pelas metrópoles do mundo, se expande e se reconfigura com as novíssimas tecnologias de informação e comunicação. O corpo humano, que desde as próteses mecânicas da visão - óculos, binóculos, telescópios e lentes diversas dos inúmeros tipos de câmeras - já havia superado seus limites imediatos, rompe outras fronteiras com as possibilidades da telepresença interativa.

As tecnologias que estão por trás das mudanças no cotidiano das grandes cidades são o Sistema de Posicionamento Global (GPS), telefones celulares, wireless laptops, Bluetooth, RFID (Identificação de Rádio Frequência), WiFi/WiMax e os Sistemas Globais para Comunicação Móvel (GSM). Basicamente são as técnicas que combinam mídias móveis e redes sem fio que permitem que nos localizemos no espaço através de posições geográficas (latitudes e longitude recebidas via GPS) em combinação com a acesso a informações suplementares (como a condição do tráfego), extraídas diretamente de inúmeros serviços e bancos de dados, via internet. São também conhecidas como 'locative media', nas experiências européias, ou 'augmented reality', na visão norteamericana do Massachusetts Institute of Technology (MIT).

A mudança de paradigma vem justamente da introdução da mobilidade. Se, há alguns anos, a discussão do 'espaço ampliado' era relativizada pelos mais céticos, com argumentos de que a 'janela eletrônica' necessitava de bases geograficamente localizadas - desktops, webcams fixas, etc - a crescente massificação das tecnologias móveis deixa definitivamente de lado esse porém.

Estão sendo também superadas as experiências iniciais das chamadas 'cidades digitais', que se debatiam entre simulacros virtuais de cidades físicas e redes de informação em pontos fixos, onde o espaço materialmente construído ainda era indispensável. Hoje através de aparatos portáteis diversos (handhelds), é possível ter uma gama bem variada de informações estando em trânsito.


New York e o vazio urbano do World Trade Center

Algumas das mais bem sucedidas iniciativas no terreno das mídias de localização para usuários domésticos partiram da gigante americana Google, com os correlatos produtos Google Maps e Google Earth. Softwares de localização, baseados na internet, que combinam imagens de alta definição feitas pelo satélite Quickbird, GPS e sistemas de informação diversos espalhados pelo globo. Os sistemas permitem a vista aérea de diversas cidades - incluindo as maiores brasileiras - e, nas metrópoles com serviços de localização de trajetos para uso pessoal, a interação com esses bancos de dados. Em algumas cidades norteamericanas a Google está fazendo a modelização 3D de edifícios. Caso de Chicago, Los Angeles e New York. Com isso é possível mesmo 'passear' por entre as ruas ou fazer sobrevôos a qualquer altura e em qualquer ângulo. Outros sistemas, que pretendem fazer concorrência à Google, já anunciam a integração das imagens de satélite com webcams, o que permite saber em 'tempo real' o que se passa em alguns pontos do planeta.

Uma outra cidade


Salvador, Praça 2 de Julho (Campo Grande)

As narrativas modernas - fotografia, cinema - já haviam multiplicado as possibilidades de percepção da cidade, fragmentando e 'editando' nossa visão. As tecnologias da hipermodernidade, no entanto, nos afasta do enquadramento do autor e nos permite, cada vez mais, estar no comando da seleção do que queremos perceber do ambiente construído urbano. Associado às informações suplementares, ao alcance das mãos via dispositivos portáteis, a nova flânerie passa pelo estabelecimento de um espaço urbano ampliado por uma realidade dual.

As consequências, à médio e longo prazo, desse entendimento certamente passará pela revisão de muitos conceitos sobre a cidade. Um campo profícuo para algumas dessas discussões está, por exemplo, nas legislações sobre sítios históricos, que ainda se baseiam, unicamente, em percursos, perspectivas e marcos visuais pré-modernos (barrocos até). Não são poucos os estudiosos do assunto que arbitram sobre intervenções em sítios com pré-existências de relevância histórico-cultural, baseados no olhar 'original'; àquele, contemporâneo à data de construção de edifícios e monumentos.

Um outro aspecto, que também motiva discussões acaloradas, passa pela questão do 'público/privado'. Está a cada dia mais complexa a definição desses limites, sobretudo quando a questão passa pelo olhar. Através das imagens de satélite se pode ver os quintais da arquitetura colonial, até então 'escondidos'; pátios de fortes militares de acesso restrito ou piscinas privadas em condomínios de luxo. Tudo em poucos minutos, passando-se de um extremo a outro do globo. O mundo sem sombras de que nos fala Baudrillard.

Salvador, Faculdade de Arquitetura e Instituto de Geociências da UFBa


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