O fim da cidade barroca

Quanto mais os telescópios forem aperfeiçoados mais estrelas surgirão


Gustave Flaubert


Paisagens mediadas

Desde que no Renascimento Filippo Brunelleschi criou com Leon Batista Alberti a perspectiva artificialis e com ela o primeiro instrumento processador de uma imagem técnica - a tavolleta - o olhar do homem nunca mais foi o mesmo. Os princípios do apetrecho dos renascentistas instituíram a câmera escura e a base para captação de imagens que dura até os dias de hoje: na fotografia, no cinema, na televisão.

Mudaram as bases de fixação dessa imagem. De chapas metálicas para películas com nitrato de prata, para tubos catódicos, para fitas magnéticas, para discos rígidos. Mudou também o alcance visual com o uso e aperfeiçoamento das lentes; microscópicas, grande angulares, telescópicas. Próteses da visão.

Com o cinema e as imagens em movimento, mais do que os ângulos inusuais e o zoom - já possíveis na fotografia estática - as técnicas de edição subverteram o espaço/tempo “real”. Essa última considerada pelo cineasta russo Sergei Einsenstein como a mais importante característica do cinema. Invertendo seqüências, cortando passagens, enxertando imagens, misturando tempos e lugares.

As técnicas e capacidades diversas do registro cinematográfico quando passam à TV, à sua difusão por antenas e satélites e à sua recepção doméstica, banalizam a imagem editada. Assim também o zoom, o superclose, os movimentos diversos da câmera como travellings e panorâmicas, bem como os ângulos inusuais.

Mais de um século em que o homem tem a possibilidade de vistas aéreas, submarinas, subterrâneas, em velocidades diversas. Choques violentos em câmera lenta ou a passagem de todo um dia num só minuto. Mais de um século tendo a câmera como prótese da visão. O século moderno: que tornou a visão fragmentada, arrítmica, atemporal, artificial. Tornou a todos um pouco ciborgues. É já é passado.

Desde o advento do processamento binário da informação que a imagem libertou-se do referente. Já não é nem mais imagem (duplo, espelho, representação), mas sim ‘imagem de síntese’, autoreferenciada. Não precisa do “real” para existir. Fractais, simuladores de vôos, videogames, maquetes virtuais. Mundo de bits e pixels.

Cidades e limites escrituras no tempo

Com a compressão de tempo e espaço operada pelas novas tecnologias de informação e comunicação, as cidades experimentam um duplo movimento de forças que tendem a tornar ainda complexa a compreensão da sua materialidade. Por um lado a comunicação em tempo real que permite teleconferências, teletrabalho, transações financeiras, visualizações à distância etc, expande os limites da cidade contemporânea para além das coordenadas geográficas. Na outra mão, um movimento acelerado procura prospectar a cidade e eliminar suas zonas de sombras. Toda uma tecnologia que fotografa, filma, registra e localiza, numa busca contínua pela transparência: câmeras, circuitos de TV, celulares que fotografam, palmtops, GPS etc. A leitura da cidade fragmenta-se, torna-se não-linear.

A cidade antiga, pré-moderna, tinha seus contornos definidos por marcos arquitetônicos bem palpáveis, no que Benjamin chamava de ‘olhar tátil’. O castelo, a catedral, os muros e os portões. Uma leitura linear com frente, fundo, laterais e percursos definidos.

A cidade moderna, de Kevin Lynch, ainda se pautava pelos suportes físicos da memória, ancorados em marcos arquitetônicos e urbanísticos. Na cidade contemporânea, ampliada, cidade de interfaces, temos um diluição dos limites objetivos. A entrada da cidade não mais corresponde, necessariamente a um ponto localizado geograficamente, mas pode ser um website governamental acessado de um outro país ou um terminal eletrônico num aeroporto fora dos limites geográficos da cidade.

A arquitetura é cada vez menos uma escrita linear no tempo e no espaço que preserva a nossa memória coletiva; um dos conceitos de monumento. Victor Hugo em Notre Dame de Paris, já dizia a respeito da invenção da imprensa em relação aos monumentos arquitetônicos “este matará aquele” (ceci tuera cela).

Fim das dobras, fim da cidade Barroca

A visão (e a percepção) da paisagem urbana, sobretudo a arquitetônica, não é mais hoje necessariamente seriada e linear como num percurso a pé, mas sim, desde o advento das tecnologias da captação da imagem em movimento é também fragmentada, arrítmica, atemporal e maquínica. Nos últimos anos as chamadas mídias localizadas vieram comprometer um pouco mais o romantismo da figura do flanêur e sua relação com o andar à deriva. Com a tecnologia de geoprocessamento (GPS) em combinação com os telefones portáteis, está cada dia mais difícil perder-se numa cidade ou mesmo descobrir um lugar por acaso. As dobras, surpresas e descobertas urbanas estão cada vez mais para assunto de literatura.

A Igreja do Passo, em Salvador, que foi cenário para o filme O Pagador de Promessas, possui uma escadaria monumental. Um movimento de ascendência leva ao limite, ao ponto máximo: a própria igreja. Quer dizer; isso até a invenção de máquinas voadoras, câmeras e de publicitários. Num vídeo promocional sobre a Bahia, a Igreja do Passo vira apenas uma passagem numa busca desenfreada paro o mar e sua escadaria, uma clareira facilmente transponível.



Videoshots das Igrejas do Passo e do Bonfim, em Salvador


Da mesma forma a famosa Igreja do Bonfim, também em Salvador, vista por meio de uma câmera num helicóptero de telejornalismo, não acolhe mais o olhar particular e intransferível do fiel que chega a um santuário e deve erguer os olhos, mas se transmuta em objeto, dessacralizado, sob um olhar onipotente que a perscruta por todos os ângulos, a desvela, e transforma o enquadramento de um na visão de milhares. A Colina Sagrada vira plano e, na verdade, no dia da festa do Senhor do Bonfim, pela TV se chega à igreja muito antes do alegre cortejo de 8 km.

Arquitetura e lugar

Embora a arquitetura tenha hoje a sua importância relativizada como referência do espaço e do tempo, em contraposição ao aumento das materializações efêmeras, sobretudo publicitárias, em parte pela proliferação de novos suportes artificiais da memória (imprensa, fotograma, vídeo, pixels e bits), paradoxalmente, o tecido urbano de grandes metrópoles tem sofrido intervenções arquitetônicas de grande porte, com reconversões inteiras de antigas áreas industriais e portuárias, onde uma arquitetura monumental tem se sobressaído. Os Grandes Projetos em Paris; Berlin e a incorporação da parte oriental; Lisboa; Buenos Aires e, aqui em Salvador, fala-se na requalificação da área do bairro do Comércio. Toma-se então a arquitetura com uma espécie de último bastião para reterritorializar as cidades. A tentativa de construção de novas narrativas através da construção de novos monumentos que possam, quem sabe, criar identidades por projeto, no dizer de um Castells. Uma tarefa conservadora para arquitetos e urbanistas.




Comentários